O teor do temor: como o pensamento de Calvino evita o “salto para a fé” de Kierkegaard

Escrito em 2009 como parte dos trabalhos para o módulo “Introdução ao pensamento de João Calvino”, do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

Cada geração traz novas idéias com respeito à fé cristã e aos meios como chegamos a esta fé. No entanto, algumas destas idéias sobreviveram às mudanças de geração e se espalharam, enraizando-se nas igrejas contemporâneas e tornando-se bases para a prática do cristianismo. Uma destas idéias é o chamado “salto para a fé”, forma pela qual são apelidadas as noções do filósofo-teólogo dinamarquês Søren Kierkegaard sobre a fé em si mesma e sobre a maneira pela qual a obtemos.

Encontramos esta idéia na presente era, quando somos confrontados com a divisão entre fé e razão/conhecimento/ciência. Mesmo sem a popularidade original do movimento filosófico existencial (do qual Kierkegaard é considerado o pai), a noção de que a fé descarta o racional em favor do absurdo, continua viva e saudável nos nossos contextos filosóficos, culturais, e religiosos. É porque ela ainda existe e, muitas vezes, é tomada como pressuposição, que se faz importante compará-la e contrastá-la com os ensinamentos ortodoxos quanto à fé, a fim de que possamos afirmar os pontos coincidentes ou identificar os pontos de discrepância.

Traçamos nosso trajeto, então, primeiro extraindo as idéias principais de Kierkegaard sobre a fé, de seu livro Temor e Tremor, que se baseia no relato da experiência de Abraão, quando provado por Deus, no monte Moriá. Uma vez identificadas as idéias principais do filósofo sobre a fé, compararemos e contrastaremos as mesmas com as idéias de Calvino, que representará, aqui, o ensino reformado. Esperamos, através desta comparação, demonstrar que o pensamento de Calvino evita os problemas filosóficos e teológicos que propiciaram a idéia do “salto”, partindo de premissas diferentes e permitindo que entendamos a fé de uma maneira alicerçada na soberania e no caráter de Deus.

Escalando o moriá em busca da fé

Søren Kierkegaard (1813-1855) escreveu diversas de suas obras com a intenção de renovar o cristianismo dos seus dias. Combatia a igreja estatal dinamarquesa (luterana), que em muitos aspectos perpetuava uma teologia sem vida, paixão ou devoção. Em suas academias, a igreja aplicava o ideal iluminista da razão soberana em relação à Bíblia, muitas vezes, indo além das Escrituras na tentativa para tornar compreensível o que não é quando nos atemos apenas à Palavra de Deus. Isto incomodava Kierkegaard sobremaneira:

Não há quem se detenha na fé, hoje em dia—vai-se mais distante…Quando, após ter lutado em combate leal e mantido a fé, o velho combatente experimentado, atingia o crepúsculo da vida, o coração conservava suficiente mocidade para não olvidar o tremor e a angústia que o haviam disciplinado quando fora jovem e que o homem maduro dominara, pois daqueles não há quem se livre totalmente a não ser que consiga ir mais distante desde muito cedo. O ponto final a que chegavam tais venerandas figuras é hoje o ponto inicial para cada qual ir mais distante”. [KIERKEGAARD, Søren. p. 2-3. Grifo meu.]

Por outro lado, Kierkegaard preocupava-se também com a facilidade com a qual as pessoas da sua época aceitavam a fé sem que realmente pensassem ou interagissem com aquilo que lhes estava sendo passado pela igreja estatal: “se pretende possuir a inteligência sem trabalho”. [Ibid., p. 21] A passividade da “fé” de seus conterrâneos resultava no surgimento de cristãos meramente nominais, que não se adentravam nos ensinamentos bíblicos individualmente e, por isso, aceitavam toda sorte de ensinamentos e interpretações, pautando suas vidas com base em doutrinas erradas.

Foi neste contexto que ele desenvolveu suas obras, procurando engajar seus leitores na interação com as idéias difíceis em relação à fé e, através delas, gerar uma paixão por Deus que, ele pensava, fosse autêntica, duradoura, e individual, sem depender dos exageros teológicos da época e que fossem, em tudo, íntegros na sua jornada de fé. [Ibid., p. 114]

Na tentativa para realizar estes desejos, Kierkegaard descreve, em Temor e Tremor, dois movimentos necessários para obtenção da fé: o movimento da resignação infinita e o movimento da fé. Ele indica que o primeiro é necessário para que o segundo possa ocorrer, e que os dois são ligados por uma experiência marcante em que o indivíduo deixa de lado sua própria razão e age em “razão do absurdo”.

O movimento da resignação infinita

O primeiro movimento que Kierkegaard descreve é aquele em que o homem reconhece a impossibilidade de alcançar o que almeja e, apesar disto, curva sua própria vontade e prepara-se para perder tudo, se for necessário. No caso de Abraão, este movimento acontece quando ele tem a plena consciência de que o seu precioso objetivo (não só a vida do seu filho, Isaac[1], mas também o cumprimento da promessa de Deus, de que seria através dele que sua descendência se tornaria uma grande nação da qual, eventualmente, viria a redenção para a humanidade [Gn 21.11]) está inutilizado diante da nova determinação de Deus, comandando-o a sacrificar Isaac: “Tudo então estava a perder-se! O renome extraordinário da raça futura, a promessa feita à posteridade de Abraão, tudo isso não fora senão fugaz clarão divino que ele tinha de apagar agora”. [Ibid., p. 15] Abraão, segundo Kierkegaard, efetua o movimento e, por isso, não argumenta com Deus (apesar de já tê- lo feito antes, quando tentou barganhar pelas cidades de Sodoma e Gomorra). [Gn 18.16-33]

O movimento da resignação infinita possui três características essenciais. Primeiro, Kierkegaard o vê como uma ação feita pela livre e espontânea vontade do homem. Para Kierkegaard, “é necessário possuir força, energia, e liberdade espiritual para efetuar o movimento infinito da resignação, também para que a sua execução se possibilite”. [Ibid., p. 41] O uso da expressão “liberdade espiritual”, no contexto da obra, indica que a resignação infinita não é apenas um movimento livre da vontade humana, e sim, um movimento que se efetua sozinho, sem ajuda divina e pelos próprios esforços.

A segunda característica deste movimento é que sua recompensa é a consciência da própria eternidade do indivíduo, em que ele transcende o finito para obter o infinito: “É preciso uma coragem puramente humana para renunciar a toda a temporalidade a fim de obter a eternidade; porém, ao menos eu a conquisto e não posso, já na eternidade renunciar a ela sem cair em contradição”. [Ibid., p. 42]

Esta consciência da própria eternidade, em torno, dá à luz a terceira característica do movimento, que é o “repouso…paz e consolo no imo da dor, sempre debaixo da condição de que o movimento seja realizado normalmente”. É assim que Kierkegaard justifica a calma de Abraão durante a caminhada ao monte Moriá. Ele já havia se resignado infinitamente, e agora estava prestes a obedecer o comando de Deus—não por qualquer motivação racional, mas em razão do absurdo. [Ibid., p. 49]

“Em razão do absurdo”

Entre um movimento (o da resignação infinita) e o outro (o movimento da fé), o homem kierkegaardiano precisa ir mais além, deixando sua razão de lado e acreditando que obterá o impossível “em razão do absurdo”: “porém que se perca a razão e com ela o finito, do qual a razão é o agente transformador, para reaver então esse mesmo finito em razão do absurdo: eis o que me traz espantado; porém não afirmo por esse motivo que seja coisa insignificante, quando, ao invés, é o único prodígio”. [Ibid., p. 49]

Para Kierkegaard, a fé começa exatamente onde a razão termina. [Ibid., p. 47] No caso de Abraão, ele “creu que Deus não desejava exigir-lhe Isaac, estando, contudo, disposto a sacrificá-lo, se isso fosse absolutamente preciso. Creu no absurdo, porque isso não faz parte do cálculo humano. O absurdo está em que Deus, pedindo-lhe o sacrifício, devia revogar o seu pedido no momento seguinte”. [Ibid., p. 29] Fica claro, então, que Kierkegaard não vê a razão humana como sendo útil para a fé, muito ao contrário, crê que a única maneira de obter a fé verdadeira é escolher crer que o absurdo acontecerá, colocando de lado a razão e jogando-se irracionalmente no vazio incerto e duvidoso. Abraão, diz Kierkegaard, abandonou a sua “razão terrestre” por outra, a fé. [Ibid., p. 13]

O movimento da fé

É sobre esta base, então, que Abraão (e também o genérico “cavaleiro da fé”—o herói da fé de Kierkegaard) faz o movimento da fé propriamente dito. O cavaleiro “torna o impossível possível, olhando-o pelo ângulo do espírito, e exprime esse ponto de vista dizendo que renuncia a ele” [Ibid., p. 37]. O movimento sai do finito para o infinito (uma consciência da eternidade) para, mais uma vez, reaver o finito através do movimento da fé em razão do absurdo. [Ibid., p. 31] É apenas quando se toma consciência do seu próprio valor eterno que se pode “alcançar a existência deste mundo pela fé”. [Ibid., p. 39]

O processo todo – resignação infinita, ação em razão do absurdo, movimento da fé – é descrito por Kierkegaard da seguinte forma:

Efetivamente [o cavaleiro] afirma: ‘Eu acredito, sem reserva, que alcançarei aquilo que eu amo em razão do absurdo, em razão de minha fé de que tudo é possível a Deus.’ O absurdo não pertence às distinções entendidas no quadro próprio da razão…No instante em que o cavaleiro se resigna, convence-se, conforme o alcance humano, da impossibilidade. Este é o resultado do exame racional que tem a energia de fazer. Contudo, ao invés, do ponto de vista do infinito, ainda permanece a possibilidade no imo da resignação; porem esta posse é, também, uma renúncia sem ser contudo por esse motivo um absurdo para a razão, já que esta mantém o direito de afirmar que, no mundo finito onde ela é soberana, a coisa é e continua sendo uma impossibilidade. O cavaleiro da fé possui ainda lúcida consciência desta impossibilidade; somente pode salvá-lo o absurdo, o que concebe pela fé. Reconhece, portanto a impossibilidade e, ao mesmo tempo, acredita no absurdo; pois se alguém supõe ter a fé sem reconhecer a impossibilidade de todo o seu coração com toda a paixão de sua alma, ilude-se a si mesmo e o seu testemunho é completamente inaceitável, porque nem mesmo atingiu a resignação infinita”. [Ibid., p. 40]

Como é possível ver nas últimas frases da citação acima, Kierkegaard não deixa brechas para outras definições de fé. Para ele, a fé em todos os seus movimentos é uma ação iniciada, efetivada e sustentada pela vontade humana. Mesmo quando ele abre espaço para a ação divina e reconhece que a realização do desejo do cavaleiro de fé “está além das forças humanas…é uma maravilha” [Ibid., p. 41], a maravilha divina é contingente sobre o movimento da vontade humana, ou seja, é a vontade humana que aciona a vontade divina.

De Copenhagen a Genebra

As situações de Kierkegaard e de Calvino assinalam algumas semelhanças, entre elas o fato de que os dois estavam empenhados em uma luta contra igrejas estatais monolíticas que haviam usurpado a autoridade bíblica, indo além das Escrituras em suas interpretações, tradições, doutrinas e práticas. Calvino, na obra A Instituição da Religião Cristã, expressa a mesma frustração que Kierkegaard iria ecoar séculos depois: “Será que crer é isto, não entender nada, contanto que obedientemente submetas teu intelecto à Igreja?” [CALVINO, João. III.II.2]

Mesmo tendo Calvino (1509-1564) vivido e escrito bem antes de Kierkegaard, no início da Reforma, é bem possível que Kierkegaard, no seu contexto luterano-dinamarquês, tenha conhecido as suas obras. Entretanto, quando comparamos as idéias dos dois pensadores, não nos deparamos com uma adaptação de tal conhecimento, conquanto haja similaridades de expressão. Ao contrário, são as diferenças fundamentais entre os pensadores que nos são mais aparentes.

Quebrantamento do homem vs. resignação infinita

Em vez da resignação infinita de Kierkegaard, Calvino descreve o primeiro passo para a fé em termos do quebrantamento do homem quando confrontado pelo seu próprio pecado e pela santidade de Deus. Ele divide este processo de quebrantamento em três fazes: (1) “a tristeza que é segundo Deus”, (2) a “excusa” [sic.], no sentido do pedido de perdão sem ainda ter a “confiança da causa”, e (3) a indignação, “pela qual o pecador grita consigo interiormente, irrita-se consigo e agride a si, quando reconhece sua perversidade e sua ingratidão para com Deus”. [Ibid., III.III.15]

Logo fica patente que o resultado deste primeiro passo não pode ser a paz, o repouso e o consolo que recompensam o homem que fez o movimento da resignação infinita de Kierkegaard. É certo que ambos os movimentos (o da resignação infinita e o do quebrantamento) alojam no homem uma consciência da própria eternidade, mas o efeito desta consciência é descrito por Calvino como sendo um terror imenso perante a santidade de Deus e perante a realização de que o homem está debaixo da sua ira. [Ibid., III.III.15] Este temor, longe de induzir calma ou passividade no homem quanto ao seu sentido eterno, torna-o irrequieto em descobrir como o vazio infinito que existe entre a sua própria pecaminosidade e a santidade de Deus pode ser transposto:

Quando, porém, estiver assentado bem profundamente o pensamento de que um dia Deus subirá a seu tribunal para exigir-nos as contas de tudo o que tivermos dito ou feito, tal pensamento não permitirá ao nobre pecador repousar, nem respirar um só instante, mas o estimulará continuamente a meditar outro gênero de vida, para poder comparecer perante o juízo de Deus com segurança”. [Ibid., III.III.7]

Calvino deixa claro, também, que este temor não é induzido pelo próprio homem, mas é fruto de um despertamento divino. Já que todo homem está sujeito ao “império do pecado”, isto inclui também a própria vontade humana, que se encontra incapaz de chegar até neste ponto do reconhecimento do próprio pecado sem que seja precedida pela graça de Deus. A preparação, ou seja, a consciência de que o homem se encontra caído e necessitado de redenção, não é fruto de nenhum movimento da vontade humana:

Apesar das vezes em que os fiéis pedem o favor de ter o coração disposto para a Lei de Deus (assim como Davi em vários lugares), deve-se notar: que o desejo de pedir seja proveniente de Deus, o que pode ser recolhido de suas palavras, pois, como deseja que seja criado em si um coração puro [Sl 51.12], certamente não arroga para si o início da criação”. [Ibid., II.II.27. Grifo meu.]

Da mesma forma que a vontade humana está sujeita ao império do pecado, assim também está a sua razão. Embutida na idéia do “absurdo” de Kierkegaard está a pressuposição de que a nossa razão é capaz de reconhecer, ou melhor, de definir, o absurdo pela sua própria essência. Se, em vez disso, pressupusermos, como Calvino, que a nossa razão é limitada e que toda razão humana é, primeiro, sujeita a Deus desde o princípio, e, segundo, caída (e por causa disso, alvo de suspeita), a necessidade da resignação infinita desaparece, já que o absurdo perde a sua impassibilidade e se encaixa na dinâmica racional entre Deus (soberano) e o homem (limitado). O temor piedoso de Calvino é, desta forma, baseado no conhecimento de Deus e não no salto para o desconhecido que caracteriza o pensamento de Kierkegaard.

A razão como ferramenta do espírito, e não obstáculo à fé

Dentro destes pressupostos quanto à razão, Calvino, longe de descartá-la, reconhece a sua utilidade como ferramenta para o quebrantamento do homem e para o crescimento da sua fé. Sua descrição da mente piedosa (já tocada por Deus e em processo de conversão) é marcada não pela autonomia que tem ou pelas idéias que cria e sim pela sua humildade e submissão:

A mente piedosa não sonha para si um Deus qualquer, mas vê somente um Deus único e verdadeiro. Tampouco se imagina um tal Deus, mas fica contente de possuí-lo tal qual se manifesta, e com grande diligência tem o cuidado de não se afastar temerariamente do seu caminho. Tendo assim conhecido a Deus, e como entende que por Ele é completamente governada, confia que Ele seja para si um tutor e protetor, e por isso tem n’Ele tão grande fé. Como entende que Ele é o autor de todos os bens, se algo a oprime, se lhe falta algo, logo se refugia em sua proteção, esperando que a ampare. Como está convencida de que Ele é bom e misericordioso, entrega-se a Ele com plena confiança, e não duvida que sempre haverá um remédio para todos os seus males na clemência d’Ele.” [Ibid., I.II.2-3]

Tal pensamento é visto aplicado no comentário de Calvino sobre o livro de Gênesis, especificamente no seu tratamento da história de Abraão. Para fins de contraste, consideremos a afirmação de Kierkegaard quanto à fidelidade de Abraão: “Abraão, porém, creu sem nunca duvidar. Creu no absurdo.” [KIERKEGAARD, Søren. p. 16] Kierkegaard, em momento algum reconhece que a história do crescimento da fé de Abraão esteve marcada por momentos sérios de infidelidade, confrontados com a irredutível fidelidade de Deus.

A visão de Calvino quanto a Abraão não demonstra este tipo de naïveté. Quando Abrão desce ao Egito com Sarai e pede que diga que é sua irmã [Gn 12.11], Calvino comenta sobre a falta de confiança em Deus, demonstrada por Abraão: “Não podemos negar esta falha especial, ou seja, que Abraão, tremendo ao ver a morte se aproximando, não entregou a sua segurança nas mãos de Deus, evitando assim pecar e trair a modéstia de sua esposa”. [CALVIN, John, p. 125] Quando Sarai insiste em que ele tome controle da situação e faça um herdeiro com Hagar [Gn 16.2], Calvino comenta que a fé de Abraão estremeceu, “quando ele se desviou da palavra de Deus e entregou-se à persuasão de sua esposa, procurando uma solução que era divinamente proibida”. [Ibid., p. 154] Deus lhe renova a promessa de um herdeiro [Gn 15.16] e Calvino reconhece que Abraão, atônito e na fraqueza de sua carne, ainda centraliza a suas atenções em Ismael, “contente com o favor já recebido, se a bondade de Deus não se concretizasse ao ponto de dá-lo outro herdeiro”.  [Ibid., p. 170] Novamente Abraão dissimula sobre a sua relação com a sua esposa, [Gn 20.2] e Calvino aponta que ele “não atribuiu o que deveria à providência de Deus”. [Ibid., p. 197]

Após o nascimento de Isaac e passados alguns anos, chegamos, então, a um momento crucial da história, em que o sacrifício de Isaac é exigido. Ambos, Calvino e Kierkegaard, reconhecem quão horrível é a situação em que Abraão se encontra. Para Calvino: “Já era triste ser privado do seu único filho, mais triste ainda que tal privação ocorresse por meio de uma morte violenta, mas muito mais lacerante era o fato de que ele mesmo havia sido nomeado o seu executor, para matá-lo com as próprias mãos”. [Ibid., p. 215] Kierkegaard quase ecoa o pensamento: “Muitos pais perderam seus filhos; porém perderam-nos pela mão de Deus, pela inescrutável e inflexível vontade do Todo-poderoso. O caso de Abraão é diferente. Prova mais difícil estava reservada para ele; a sorte de Isaac estava em sua mão ao segurar a faca”. [KIERKEGAARD, Søren, p. 17]

A esta altura, se seguíssemos Kierkegaard, Abraão deveria deixar a razão de lado e efetivar o salto para a fé em razão do absurdo. Calvino, porém, reconhece que, longe de ser uma coisa a ser desmerecida, a razão de Abraão foi uma poderosa ferramenta no fortalecimento da sua fé:

Abraão, quando teve que matar o seu filho, permaneceu como sempre foi; e a sua fortitude mental era tal que fortaleceu a sua envelhecida mão e a possibilitou a oferecer o sacrifício, sacrifício este cujo mero contemplar era suficiente para dissolver e destruir o seu corpo inteiro”. [CALVIN, John, p. 219]

Abraão estava preparado para sacrificar seu segundo maior tesouro (que era um presente de Deus) porque ele dava mais valor ao dom da fé (seu maior tesouro) que permitia que ele se relacionasse com Deus. E esta fortitude de mente, ao contrario de ser um salto para longe da razão, deu-se exatamente porque Abraão havia racionalmente aprendido, através das experiências de vida acima mencionadas, que Deus sempre cumpria a sua palavra e havia sido “indubitavelmente persuadido que Deus era fiel, deixando as coisas desconhecidas nas mãos da Providência Divina”. [Ibid., p. 217]

A fé como dom de Deus vs. movimento da vontade humana

Diferente de Kierkegaard, que louva Abraão pela sua força de vontade e liberdade espiritual, Calvino classifica a fortitude mental que possibilita a ação em fé, como obra de Deus: “foi pela graça especial de Deus que ele pode obter tão singular vitória”. [Ibid., p. 219] De maneira nenhuma Calvino diria, então, que a razão teria triunfado, mas sim, que Deus graciosamente sustentara a mente de Abraão para que pudesse chegar aonde chegou e prevalecer na provação tão difícil à qual foi submetido.

Chegamos então no último ponto de divergência entre os pensamentos de Kierkegaard e Calvino. Para Kierkegaard, a fé é um salto efetuado pela vontade humana. Para Calvino, “somos agraciados pelo Espírito” com a fé:

“Chamando à fé “obra de Deus” e designando-a apositivamente pelo epíteto de ‘beneplácito’, [Paulo] nega que venha do movimento natural do homem. E, não contente com isso, acrescenta que é uma amostra do poder divino. Aos coríntios, diz que a fé não depende da sabedoria dos homens, mas que se apóia na potência do Espírito”. [CALVINO, João, III.II.35]

A visão de Calvino sobre a fé não é, então, um movimento da vontade, do finito para o infinito, resgatando o finito em razão do absurdo, tal como disse Kierkegaard, e sim um movimento do Deus infinito que sustenta o homem finito e o possibilita a efetuar as boas obras que compõem o fruto da fé, pela sua graça. [Ibid., II.II.6] É como uma “espécie de ressurreição, da morte à vida; porque quando, por causa de Cristo, nos é dado que creiamos nele, então começamos a passar da morte à vida”. [Ibid., III.XIV.6] E é uma obra completamente realizada pelo Espírito Santo de Deus, que utiliza a nossa razão para que conheçamos cada vez mais a Cristo: “Se alguém deseja que isso seja dito de forma mais clara: a fé está situada no conhecimento de Cristo. E Cristo não pode ser conhecido senão pela santificação de seu Espírito”. [Ibid., III.II.8]

Conclusão

Nos últimos parágrafos de Temor e Tremor, Kierkegaard declara que “a fé é a mais elevada paixão de qualquer homem”. [KIERKEGAARD, Søren, p. 114] Ao pressupor a autonomia da vontade e da razão do homem, Kierkegaard, de fato, relega a fé ao mesmo plano das paixões humanas: se as paixões puderem ser atingidas humanamente, também poderão ser humanamente perdidas. Se as paixões, às vezes, assomam a totalidade do nosso ser, outras vezes nos cegam e não nos permitem ver coisas mais importantes.

Descartando a razão para fazer o salto, o cavaleiro da fé, de Kierkegaard, também se despe de qualquer base de conteúdo para a sua nova existência, salvo sua própria vontade. Kierkegaard formula seus pensamentos sobre a fé de maneira tal que ignora completamente o movimento de Deus para com o homem, entronizando o homem como soberano sobre a sua própria salvação e entregando-lhe as chaves da transcendência sem que tenha havido quebrantamento e transformação de coração, pelo Espírito Santo de Deus.

É no pensamento bíblico de Calvino que encontramos a resposta aos problemas levantados por Kierkegaard. Calvino lembra-nos de que a fé é, acima de tudo, um dom de Deus ao homem, totalmente imerecido. Deixa claro, também, que é o próprio Deus quem opera em nós o reconhecimento do pecado e o arrependimento, e não a nossa própria iniciativa de “resignação infinita”. Nesta perspectiva, Calvino demonstra como a razão, longe de ser descartada como empecilho à fé, é maravilhosamente usada pelo Espírito Santo como ferramenta para nos levar à fé e fortalecer-nos nela, não por “razão do absurdo” mas pela consciência que temos do caráter de Deus e da sua fidelidade nas nossas vidas.


[1] Conservo o termo Isaac em razão do uso feito por Kierkegaard.


Bibliografia

CALVIN, John. Calvin’s Commentaries. Vol. 1: The Penteteuch. Grand Rapids: Associated Publishers and Authors, 1966. Traduções minhas.

CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. São Paulo: UNESP, 2007.

KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 2008.