Comunicação Verdadeira

Publicado anteriormente na revista iPródigo #3, em 2013.

Olhos sofridos, quase fechados perante o sol que já começava a arder naquela manhã, fitavam os pequenos passos do neto à sua frente, escalando a última duna entre os viajantes e seu destino. Ao transpor o cume, o menino repentinamente parou, arregalando os olhos ao deparar-se com a tremenda visão. O velho pescador sorriu e agachou-se ao seu lado, permitindo, em silêncio, que o esplendor daquela experiência tivesse efeito pleno na mente e nas feições do seu querido netinho.

—Vovô, o que é isso?—Disse o menino, apontando.

—É o mar, meu bem.

Outras descobertas encheram aquela manhã: a água fria, a diversidade e multiplicidade de conchas, o sargaço, castelos de areia, a perseguição das ondas que iam e a fuga das que vinham. Ao se aproximar o meio-dia, o avô recolheu as coisas e chamou o seu companheiro, avisando-lhe que estava na hora de fugir do sol e perseguir o almoço da avó.

—Só mais uma coisa, vovô.—O menino se aproximou, olhou na bolsa do vô, e tirou um copinho de plástico. Correu para a beira d’água e se agachou, cuidadosamente tampando o copo antes de retornar.

—Pronto, agora já podemos ir.

O velho tentou descartar o episódio, mas quanto mais caminhavam, mais a sua curiosidade crescia. Ao chegarem na porta de casa, não aguentou mais.

—Meu bem, o que você fez com aquele copinho?

O garoto tirou o copo do bolso, cheio até a metade, e respondeu:

—É que eu não sei se a vovó já foi ao mar, então eu trouxe o mar pra ela ver.

Ingenuidade bem-intencionada

Comove-nos o pequeno explorador pois sabemos que apesar de suas boas intenções, o que está copo nunca poderá comunicar corretamente, ou mesmo parcialmente de forma significativa, a totalidade do mar. Apesar de possuirmos a capacidade de reconhecer esse erro, quero propor que ao tratarmos do conceito de verdade, muitas vezes somos tão ingênuos como aquele menino. Compramos a ideia de que a verdade é a mera correspondência entre afirmações e pensamentos e os “fatos brutos” da realidade. E já que os fatos são muitos e dispersos, tratamos a verdade da mesma forma, e acabamos comunicando “verdades” diversas e sem conexão. Caímos na ilusão de que cada copinho não só pode conter, como contém, o mar. E infelizmente muitas vezes esquecemos completamente do mar, no nosso zelo de distribuir copinhos cheios até a metade.

Para lidar com essa visão errada da verdade, que afeta tanto as nossas comunicações como também as nossas introspecções e sistematizações, precisamos examinar brevemente de onde vem o erro, buscar corrigí-lo e compreender algumas de suas dimensões, e traçar alguns caminhos de aplicação prática, com a finalidade de vivermos e caminharmos verdadeiramente, em nossos pensamentos, ações, e comunicações.

A realidade pessoal

Já que a verdade é, pelo menos em parte, uma correspondência à realidade, devemos começar examinando o conceito secular de realidade. Essa visão carece de um elemento unificador. Os fatos são o que são sem referência absoluta e sem conexão. Podemos imaginar conexões de causa e efeito entre alguns deles, mas até essas conexões dependem de nossa observação, e não há nada que garanta que a próxima causa produzirá o mesmo efeito. Consequentemente, somos forçados a falar de probabilidades, deixando de lado a certeza. E isso coloca em jogo não só a nossa capacidade de saber que algo realmente existe de uma determinada forma, como também a possibilidade de comunicar eficazmente quanto à existência do mundo ao nosso redor.

A cosmovisão bíblica oferece a solução a esse problema. Deus é o elemento unificador. Ele declara que é o único que existe sem derivação ou sustento externo (Isaías 43.10-11, Atos 17.24-25), e também nos revela que tudo o mais existe e é mantido baseado na pessoa dele (Neemias 9.6, Atos 17.25, 28, Hebreus 1.3, Colossenses 1.17). Tudo o que existe é, então, teorreferente[1], não apenas apontando para a sua pessoa mas diretamente dependendo dela para sua própria existência, e tendo como propósito final a revelação da pessoa do próprio Deus. Por causa disso, sem ele, nada do que existe continuaria a existir ou poderia ter significado.

A Verdade em Pessoa

Essa referência da realidade à pessoa de Deus, tanto em sua existência como no seu significado, é essencial para compreendermos o erro da cosmovisão secular quanto à verdade. Ao examinarmos as Escrituras referidas acima, percebemos a tolice da tentativa de construir uma ideia de realidade que ignora o Criador, usando em seu lugar as coisas que derivam e são sustentadas por ele como se fossem o padrão final para julgarmos o que é real e o que não é.

No entanto, seguindo a mesma linha, a definição secular de correspondência à realidade torna a verdade impessoal pois importa a ideia de que a realidade é impessoal. Só é possível manter a ilusão de que a verdade é a correspondência a fatos brutos se já se comprou a ilusão de que tais fatos brutos existem.

Se rejeitamos a ilusão quanto à realidade, que definição nos resta para a verdade? Podemos começar dizendo que já que a realidade é teorreferente, e a verdade deve corresponder de alguma forma à realidade, então uma proposição verdadeira, necessariamente, precisa expressar essa teorreferência de alguma forma. No mínimo, então, a verdade é não só uma correspondência às coisas como foram criadas, mas um reconhecimento da sua origem e uma expressão da mesma. No entanto, a Bíblia vai muito além disso. Se por um lado o Criador declara que a realidade é pessoal porque se fundamenta e depende de sua Pessoa, quando se trata da verdade, o Filho declara que ela não só é pessoal, mas é a sua própria Pessoa (João 14.6). Isso significa que não existe verdade que possa ser expressada sem expressar também os outros aspectos da pessoa de Cristo. Qualquer tentativa de comunicar a verdade que não leve isso em conta é concebida em erro e inevitavelmente falha no seu propósito.

Ao proclamar que ele mesmo é a Verdade, o Senhor Jesus estabelece um contexto no qual essa Verdade existe. Suas palavras foram “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim.” (João 14.6) Toda expressão fiel da pessoa de Cristo incorpora, então, três marcas principais que não podem ser isoladas ou separadas das outras:

  1. corresponde a, depende de, e aponta à realidade pessoal e teorreferente (verdade);
  2. impulsiona aquele que a recebe em direção ao Criador, dando acesso a ele (caminho);
  3. tem como alvo a vivificação daquilo que está morto, seco, e em deterioração (vida).

O conceito de verdade como correspondência à realidade faz parte da expressão da Verdade, mas a Verdade não se reduz à correspondência e só é comunicada com êxito se impulsionar e vivificar. O mesmo se aplica aos outros atributos do nosso Deus. Por exemplo, ao invés de tratarmos a verdade e o amor como entidades separadas e nos esforçarmos para falar a verdade em amor, precisamos entender que a Verdade e o Amor são a mesma pessoa (1João 8.16), e que a tentativa de comunicar a Verdade sem comunicar o Amor é completamente sem sentido. Tal tentativa não só remete a ideia de verdade apenas à ideia de correspondência, como também ignora a pessoalidade da realidade à qual a correspondência deveria se referir. A comunicação sem Amor, enfim, deixa de ser Verdade e deixa de corresponder à realidade teorreferente, tornando-se pois mentira.

Comunicando a Verdade, verdadeiramente

A compreensão da realidade pessoal e da Pessoa que é a Verdade inexoravelmente tem consequências sobre as nossas comunicações. Não podemos mais jogar palavras na tela como se não tivessem contexto, impulso, ou destino. Não podemos mais nos esconder atrás da ideia de correspondência aos fatos, dizendo que falamos a verdade ao mesmo tempo que trituramos nossos irmãos, mordendo-os com o nosso tom e as nossas afirmações. Precisamos usar a graça constantemente, tecendo cada texto de uma forma que comunique a Verdade à maior quantidade de pessoas, sem restrições artificiais por causa de estilo (vaidade) ou preguiça de explicar ideias e termos (arrogância).

Em toda comunicação, temos de estar cientes de que se ela preza ser verdadeira, ela precisa levar as pessoas à Verdade. E a maneira de fazer isso não é dividi-la artificialmente em pequenos pedaços que sejam confortáveis de carregar e transmitir (o que é impossível), e sim falar de forma que impulsione nossos ouvintes e leitores à vida na pessoa de Jesus Cristo.

Não, não é possível trazer o mar até a vovó. Mas podemos, e devemos, levar a vovó até o mar.


[1] O termo teorreferente foi criado pelo Dr. Davi Charles Gomes para descrever essa propriedade existente em toda a criação, rejeitando “‘uma noção escolástica que pressupõe fatos brutos referidos a posteriori pelo sujeito’ e ao mesmo tempo enfatiza[ndo] adequadamente que os fatos não só se referem indiretamente a Deus como ponto de transcendência epistêmica, mas, mais que isso, revelam a Deus em última instância.” GOMES, Davi Charles. A metapsicologia vantiliana: uma incursão preliminar. In: Fides Reformata XI:1 (2006), p. 116, nota 14.